10 fevereiro, 2006

"As aparências são o bastante"

Por Tiago Faria

Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense.

O Vidiota

Livro: O Vidiota
Autor: Jerzy Kosinski
Artigo: "As aparências são o bastante"


Símbolo de uma época sem internet ou reality shows, Chance é um homem moldado pela televisão. Um sujeito que trabalha todos os dias, religiosamente, na manutenção de um modesto jardim - e gasta o restante do tempo diante de um aparelho de tevê. Memoriza o comportamento de personagens de ficção, imita os trejeitos das pessoas dos noticiários e, assim, cresce sem precisar aprender a ler ou escrever. Pior: sem a necessidade de viver experiências reais. Quando escreveu O Vidiota , lançado originalmente em 1970, o polonês Jerzy Kosinski não viveu para ver no que daria aquele planeta em que Chance morava. Em 1991, antes de completar 60 anos de idade, se matou em Nova York. A nova edição brasileira de O Vidiota (no original, Being there ) só faz revelar o quanto o livro ganhou novos sentidos com o passar do tempo. Hoje, interessa tanto como um retrato muito rico dos medos de uma época específica (e sobram ecos de Guerra Fria aqui e ali) quanto como uma parábola ainda atual que ataca com sarcasmo a mania de simplificação que pode até ter virado marca para os Estados Unidos, mas que serve de carapuça para qualquer uma entre tantas nações que copiam os trejeitos da cultura daquele país. Chance é o homem-chavão elevado ao posto de homem do ano.

Para quem conheceu esse personagem graças ao filme Muito além do jardim, que Hal Ashby dirigiu em 1979, a leitura do livro pode ser um eficiente corretivo para aquele Chance infantllizado, apalermado que, apesar da competente interpretação de Peter Sellers, está longe do homem de Kosinski. A televisão não é uma fonte de rejuvenescimento ou de inocência para o personagem, mas sim uma figura materna que o educa para se transformar em um cidadão de superfície, incapaz de sensações ou reflexões profundas sobre qualquer tema. O perturbador em Chance é como ele se mostra, quanto mais o leitor pensa conhecê-lo, uma pessoa oca em reações espontâneas, em idéias, em emoções. Essa talvez seria uma pílula amarga demais para um filme de grande estúdio engolir.

Narrado na forma de uma parábola objetiva e seca, o livro apresenta uma situação extraordinária - a história de um homem que precisa sair ao mundo depois de uma vida inteira de confinamento - como uma sucessão de anticlímaxes. Chance (que anda a todo tempo ao lado do acaso) não sofre diante de um mundo muito diferente daquele em que vive. Pelo contrário: ele aprende tudo na televisão, e isso é o suficiente para que ele se saia muito bem na sala de estar de homens poderosos, de chefes de estado. Em pouco tempo, ocupará a posição de convidado de honra em um encontro com o presidente dos Estados Unidos.

Diante de gente importante -economistas, estadistas -, Chance dispara frases ralas sobre flores, árvores e raízes. Elas são interpretadas como metáforas geniais para a condição do país. Quando convidado para um programa de tevê (a glória máxima, para o personagem), faz um povo inteiro se emocionar ao tecer relações entre a crise financeira e jardins que perdem a cor para brilhar na próxima estação. É aplaudido por norte-americanos e soviéticos. Mas, para Chance, que importância tem tudo isso? Diante da mulher chique que o recebe e tenta conquistá-lo com lingerie em uma noite romântica, só consegue dizer um eu gosto de olhar para você. Uma folha em branco, Chance pode também ser usado como uma perfeita figura política - sem contravenções anteriores, sem passado, uma imagem unidimensional e agradável. Em 1970 ou em 2005, O Vidiota incomoda como um olhar triste para uma América que se recusa a sair da borda e dar o mergulho.

Fonte:
http://www.revistadigital.com.br/leitura.asp?CodMateria=3083

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