16 março, 2006

A um clique de distância

16/3/2006

Thomas Edison foi um grande inventor, mas era péssimo em fazer prognósticos. Quando, em 1922, previu que os filmes iriam tomar o lugar dos livros didáticos, ele deu início a uma longa seqüência de previsões equivocadas sobre a capacidade que diversas tecnologias teriam de revolucionar o ensino. Até hoje, nenhuma dessas previsões satisfez as expectativas. Mesmo o computador, que já é comum na maioria das escolas, não tem uma performance consistente quando se trata de melhorar o ensino.

"Nos últimos dez anos não ocorreram avanços que possam ser atribuídos com segurança à ampliação do acesso aos computadores", disse o professor de educação Larry Cuban, da Universidade Stanford, em 2001, resumindo as pesquisas existentes sobre a computação na área educacional. "O vínculo entre as melhoras nos resultados de testes e a disponibilidade e o uso de computadores é ainda mais contestado". O problema se deve em parte, ele observou, ao fato de que muitos computadores presentes nas salas de aula simplesmente não são usados. Pesquisas mais recentes, incluindo um estudo feito pela Universidade de Munique com 174 estudantes em 31 países, indicam que os alunos que fazem uso freqüente do computador apresentam resultados acadêmicos piores do que aqueles que o usam pouco ou não usam. Sejam essas avaliações conclusivas ou não, está claro que o computador não cumpriu as promessas feitas em seu nome.

Os promotores da tecnologia educativa já retrocederam para uma posição muito mais modesta, a de que o computador é apenas uma ferramenta a mais - "é o que você faz com ela que conta". Essa resposta, no entanto, deixa de levar em conta o impacto das tecnologias. Longe de ser neutras, elas reformulam todos os elementos num ambiente, alguns para melhor, outros para pior.

Instalar um laboratório de informática numa escola pode significar que os estudantes têm acesso a informações que jamais conseguiriam obter de outro modo mas também pode significar que as crianças passam menos tempo brincando ao ar livre, pode exigir a redução do dinheiro gasto com materiais de arte e, pela primeira vez na história da educação nos EUA, tornar necessários "acordos de uso aceitável" para informar os pais de que a escola não se responsabiliza pelos materiais que os alunos encontram enquanto estão nas salas de aula.

O argumento de que o computador é apenas uma ferramenta não leva em conta o fato de que, sempre que optamos por uma atividade de aprendizagem, estamos decidindo que tipos de encontro com o mundo são válidos para nossos filhos.

Alguns anos atrás, participei de um debate na Televisão Pública de Iowa que focou algumas das "melhores práticas" para o uso do computador em sala de aula. No início do programa, um vídeo mostrou como os alunos de uma classe de quarta série de uma escola rural de Iowa usavam o computador para gerar trabalhos em hipertexto sobre um clássico da literatura infantil, "Charlottes Web", de E.B. White. No vídeo, os alunos orgulhosamente apresentaram seu trabalho, que incluía uma "aranha" gerada por computador que saltava pela tela e uma figura animada de menino dependurado de uma corda em um paiol. No final, um estudante falou das lições importantes que aprendera com o trabalho: que se devem ajudar as outras pessoas e tratá-las com cortesia.

O vídeo encerrou lições importantes também para os espectadores. As imagens dos alunos conversando em torno dos computadores desfizeram (na minha opinião, com razão) a idéia de que o computador sempre isola seu usuário.

Além disso, a professora explicou que os alunos estavam tão entusiasmados com o projeto que optaram por ir ao laboratório de informática em lugar do recreio. Ela pareceu impressionada com essa dedicação, mas é justamente isso que demonstra a primeira influência preocupante do computador: ele é tão atraente que afasta as crianças do tipo de atividade por meio da qual elas sempre descobriram a si mesmas e o lugar que ocupam no mundo.

E essas oportunidades estão desaparecendo em toda parte nos EUA. Até 2000, de acordo com um relatório de Judith Kieff, professora da Universidade de Nova Orleans, mais de 40% das escolas de ensino fundamental e médio dos EUA haviam eliminado o recreio por completo. Enquanto isso, estatísticas do Departamento de Educação dos EUA indicam que, entre 1990 e 2000, os gastos com a tecnologia nas escolas tiveram aumento de mais de 300%.

É verdade que se relacionar com outras crianças no recreio também pode ser uma experiência difícil e marcante, com agressões e humilhações. E também é verdade que o computador oferece uma alternativa confiável aos perigos das brincadeiras livres e soltas, sem supervisão, e que se torna atraente justamente por esse motivo. Mas, freqüentemente, as escolas utilizam o computador ou outras atividades altamente estruturadas para impedir que essas características perturbadoras da infância venham à tona -por medo ou pela compulsão de alimentá-las à força com a maior quantidade possível e disponível de informações.

Isso nega à criança o treino e o feedback de que ela tanto precisa para desenvolver as habilidades e as disposições de uma pessoa amadurecida. Se a criança não puder mergulhar os pés nas águas da atividade social não-supervisionada, é provável que ela jamais aprenda a nadar no mar da responsabilidade cívica.

Infelizmente, depois de ter assistido ao Discovery Channel e trabalhado com simulações computadorizadas que comprimem tempo e espaço, as crianças costumam se decepcionar quando conhecem um lago ou riacho real pela primeira vez: os peixes não estão saltando, os veados não estão tomando água. As experiências eletrônicas dos estudantes os levaram a ter a expectativa de ver tudo isso acontecendo. Esse fenômeno deixa os estudantes apáticos e impacientes em ambientes diversos, desde discussões em sala de aula até experimentos sociais.

Existe uma diferença profunda entre aprender com o mundo e aprender sobre o mundo. Qualquer leitor jovem pode encontrar na internet uma abundância de informações sobre minhocas. Mas o computador só pode ensinar ao aluno sobre minhocas por meio de símbolos abstratos: imagens e textos apresentados numa tela bidimensional.

Compare-se isso com o modo como as crianças aprendem sobre minhocas da maneira direta: cavoucando a terra. É isso o que pode infundir um sentimento de reverência a uma descoberta, levando-a para além da simples ingestão e manipulação de símbolos.

Em vez de procurar compensar a crescente desconexão com a natureza, as escolas parecem estar cada vez mais decididas a reforçá-la. Esse é um problema que começou muito antes do uso dos computadores nas escolas.

A pedagogia ocidental sempre deu preferência ao conhecimento abstrato, em lugar do aprendizado prático. Mesmo a dependência excessiva ou precoce dos livros inibe a capacidade das crianças de criar relações diretas com os temas que estudam. Em razão de sua potência, os computadores exacerbam essa tendência.

Durante o tempo em que trabalhei com jovens e internet, senti-me constantemente frustrado por estudantes que, de uma hora para outra, sumiam dos bate-papos virtuais relacionados aos trabalhos. Eles indicaram que viam esses afastamentos como maneira de exercer controle sobre relacionamentos que se desenvolvem on-line.

Essa maneira de evitar interações potencialmente difíceis também veio à tona em um grupo de alunos da classe dos "mais talentosos e dotados" de minha escola. Eles preferiam falar de diversidade cultural com estudantes do outro lado do mundo, pela internet, do que conversar com os alunos estrangeiros de suas próprias escolas. Aqueles estudantes inteligentes temiam as conseqüências incertas do contato cara a cara com os imigrantes.

O que diferencia o computador de outros artefatos é o elemento do controle. A mensagem mais sutil e impressionante transmitida pelo vídeo do livro clássico é que as crianças podiam assumir o controle do próprio aprendizado. Em lugar de estar passivamente ouvindo uma aula expositiva, elas estavam interagindo diretamente com o conteúdo educacional, em seu ritmo.

Para desenvolver-se normalmente, qualquer criança precisa aprender a exercer algum controle sobre seu ambiente. Mas o controle oferecido pelo computador é ilusório e, em última análise, perigoso. É bom lembrar que o computador sempre tem um pedagogo oculto -o programador -, que desenhou o software e que, invisível, controla as opções abertas aos estudantes a cada passo do caminho. Antes de poder ter qualquer controle que seja, o estudante precisa se render ao pensamento hiperacional do computador.

E qual é o prêmio que a criança ganha? Nele está encerrado um dos perigos menos observados da era digital: a natureza problemática do poder que a criança ganha com o computador, além da falta de disciplina interna no uso que ela faz desse poder. A criança pressiona uma tecla e o computador desenha um X na tela. A criança não desenhou aquele X, ela ordenou ao computador que o fizesse, e a máquina empregou uma quantidade enorme de habilidade adulta para concluir a tarefa.

Ao perder ou enfraquecer sua capacidade de realizar ela própria uma imensa gama de atividades abstratas complexas, a criança ganha controle sobre essas atividades. Lamentamos os casos de alunos que usam corretor ortográfico ou calculadora em lugar de aprender a escrever e fazer contas corretamente. Mas o sacrifício do crescimento interior em prol do poder exterior costuma operar em nível mais sutil quando uma criança monta uma exposição em Power Point usando pouco ou nenhum material que ela própria criou.

Talvez seja o fato de que essa ênfase sobre o poder externo ensina à criança uma maneira manipuladora de relacionar-se com o mundo. O computador faz um trabalho excepcional no sentido de facilitar a manipulação de símbolos e sua manipulação ilimitada. No mundo real, porém, é precisamente a resistência de cada objeto à manipulação ilimitada que força as pessoas a reconhecer as limitações físicas do mundo natural, os limites do poder que exercemos sobre ele e a necessidade de respeitarmos a vontade dos outros seres deste mundo.

Para desenvolver-se normalmente, a criança precisa aprender que não pode obrigar um botão de rosa a abrir-se, não pode machucar um amigo e simplesmente recomeçar tudo como estava antes. No entanto, pais e educadores vêm se apressando a entregar ferramentas digitais às crianças muito antes de elas terem aprendido essas lições no mundo real. E, apenas agora, estamos começando a ter o primeiro vislumbre dos resultados disso.

No dia em que minha turma de tecnologia avançada de computação se conectou à internet, percebi que estava prestes a conferir a meus alunos do ensino médio mais poder de fazer mais mal a mais pessoas do que quaisquer teens já tinham tido na história. Eles poderiam provocar dor com alguns toques no teclado e jamais precisariam ver as lágrimas derramadas. Será que alguém os ajudara a desenvolver a força moral e ética necessária para impedi-los de utilizar esse poder?

Pelo contrário - entregamos máquinas tremendamente poderosas a nossos filhos, mesmo os pequenos, muito antes de eles possuírem a capacidade moral necessária para fazer bom uso delas. Então, para garantir que nossos filhos não passem por baixo das cercas eletrônicas que erigimos à sua volta, depositamos nossa confiança em outras tecnologias - incluindo filtros na internet - ou no medo de castigos draconianos. Não é assim que se preparam os jovens para serem membros de uma sociedade democrática, que rejeita o controle autoritário.

É claro que nada disso acontece da noite para o dia nem com uma única exposição a um computador. É preciso tempo, e é exatamente por isso que está errado oferecer objetos tão poderosos de formação de visão de mundo a crianças em idade impressionável.

Nossa era tecnológica exige uma nova definição de maturidade: a aceitação dos limites corretos de nosso próprio poder em relação à natureza, à sociedade e aos nossos próprios desejos. Desenvolver esses limites pode ser o objetivo mais importante da educação no século 21.

Dada a onipresença da tecnologia digital, não é necessário nem sensato ensinar as crianças a rejeitar o computador. O que é necessário é confrontar os desafios que a tecnologia nos coloca com sabedoria e grande cuidado. No prefácio a seu livro reflexivo "The Whale and the Reactor" (a baleia e o reator), Langdon Winner escreve: "Estou convencido de que qualquer filosofia da tecnologia digna de ser ouvida terá, algum dia, que indagar: 'Como poderemos limitar a tecnologia moderna de maneira a corresponder à melhor idéia de quem somos e do tipo de mundo que queremos construir?'". Infelizmente, nossas escolas formulam a pergunta inversa: "Como podemos limitar os seres humanos para corresponder à melhor utilização de que nossa tecnologia é capaz e ao tipo de mundo que ela vai criar?".

Em consequência disso, nossos filhos muito provavelmente vão levar adiante esse processo de alienação, numa tentativa vã de preencher materialmente vidas prejudicadas pelo vazio interno. Não devemos nos surpreender quando eles "resolvem" problemas pessoais e sociais voltando-se às drogas, às armas, aos blogs repletos de expressões de ódio e a outras "ferramentas" poderosas em lugar de procurar força e apoio em seu interior ou nas outras pessoas da comunidade. Afinal, isso é exatamente o que nós os ensinamos a fazer.

Existe um paradoxo no cerne da relação entre criança e tecnologia: o de que, quanto maior o poder externo que a criança tem à sua disposição, mais difícil será para ela desenvolver a capacidade interna de utilizar esse poder com sabedoria. Quando educadores, pais e responsáveis políticos compreenderem esse fenômeno, talvez a educação comece a enfatizar o desenvolvimento de seres humanos que vivem em comunidades, e não apenas o virtuosismo técnico.

Tradução de Clara Allain.

Autor: Lowell Monke da 'Orion Magazine'
Email do Autor: n.d.

Fonte: Folha de São Paulo e
http://www.revistadigital.com.br/tendencias.asp?CodMateria=3109

2 comentários:

Avó do Miau disse...

As crianças não têm maturidade para gerir a informação que recebem através das novas tecnologias! Não só não vêem as lágrimas dos outros, como muitas vezes, nós como pais não nos apercebemos das lágrimas dos nossos filhos, causada por esta má gestão de um vasto leque de imagens e mensagens inapropriadas para as suas idades! Desenvolvem-se complexos diversos, quer de inferioridade, quer de um egocentrismo extremo, mas o pior de todos, a solidão!
Excelente artigo para reflectir e sobretudo, agir!
Daniela Mann

hkclebicar disse...

Tenho uma filha de 3 anos e meio, Maria Eduarda. Ela gosta de desenhar do modo antigo, ou seja, no papel e com lápis de cêra. Nada de computador ainda. Ela sabe que ele existe, que a TV existe, o DVD, mas ela seque mexe nos controles destes. Não que eu a tenha impedido, mas nunca incentivei ou muito menos a repreendi. É uma coisa natural, tudo o que precisa para brincar de desenhar e colorir já está a sua disposição numa mesinha, e só. Não falta elogios quando ela vem me mostrar um desenho que ela diz que sou eu. Ontem à noite ela fez um desenho com um risco entre as pernas do desenho. Ela disse que era o 'piu-piu' do pai. Achei graça. Pensei comigo, será que ela já desenhou isto na escolinha? Mas deve ser mais intuitivo para qualquer criança o fato de um traço virar um pênis do que uma vagina. Quando ela deseja mostrar algum desenho para mim, e se estou fazendo outra coisa, ela é firme em dizer para que eu pare e dê atenção para ela. Ela realmente sabe o que quer, outras crianças não reagiriam assim, por isso, cada uma deve ser tratada com a atenção necessária para que nunca fique em excesso ou escasso. Temos que saber 'ler' por dentro e por fora o que sentem nossas crianças.