24 março, 2006

John Major prevê um mundo com seis motores

23/3/2006

Os EUA continuarão os maiores, Europa e Japão continuarão ricos, mas a economia mundial dependerá cada vez menos desses três motores, pois está em processo de ganhar outros três: China, Sudeste Asiático e Índia. Segundo o ex-primeiro-ministro britânico John Major, esse é o mundo no qual o Brasil terá de se inserir e fazer negócios.

Major, de 62 anos, é uma figura insólita entre os ex-líderes mundiais. Premiê de 1990 a 97, ele deixou cedo a política não para um cargo numa instituição multilateral, o que é mais comum, mas por uma carreira na iniciativa privada, o que inclui o posto de conselheiro-sênior do banco Credit Suisse.

Fã de esporte, Major está escrevendo um livro sobre a história social do críquete. Ao contrário muita gente, ele não vê um favoritismo destacado do Brasil na Copa do Mundo. "Numa competição como essa, todo mundo pode ter um dia ruim". Mas lamenta que Ronaldinho jogue no Barcelona e não no Chelsea, seu time de coração.

Se não no futebol, Major é otimista com a perspectiva do Brasil na economia. Ele elogiou os fundamentos econômicos e disse que o país é equiparado à China e à Índia por investidores internacionais. E que, apesar de alguns problemas, como a excessiva taxação corporativa, tem vantagens comparativas em relação aos asiáticos, como a auto-suficiência em petróleo.

O que o sr. veio dizer sobre a percepção externa do Brasil?

John Major: A primeira coisa é notar como o país mudou notavelmente nos últimos anos. Dez anos atrás, ninguém esperaria que o Brasil conseguisse endireitar seus fundamentos econômicos. Ainda há coisas a fazer, mas os fundamentos estão corretos. O país está está crescendo continuamente, ainda que não espetacularmente, tem uma moeda sólida, está repagando sua dívida, está se diversificando em termos industriais.

Diante da turbulência de algumas áreas na América Latina, é impressionante o modo como as coisas evoluíram no Brasil. A percepção externa do Brasil hoje é que o país tem uma perspectiva extraordinária. As pessoas o equiparam à China e à Índia em termos de perspectivas para o futuro.

Há problemas. A visão do investidor estrangeiro é que o Brasil taxa demais no nível corporativo, é excessivamente regulamentado e ainda é muito burocrático. Mas tudo isso é passível de correção pela ação do governo. E acho que as pessoas estão cada vez mais interessadas no Brasil como um mercado emergente global e como um lugar para investir, para negócios.

O país está ganhando um crescente high profile e é visto de modo bem favorável no mundo.

E o que dizer da China?

Major: Há muito a dizer sobre a China. O país teve crescimento de 9,5% em média nos últimos dez anos. Esses são os números oficiais, mas provavelmente foi mais do que isso. É um sucesso extraordinário. Mas poucas empresas que foram para lá estão tendo lucros muito grandes, e sim um lucro certo e contínuo, nada de espetacular. O investimento foi em grande parte atraído pelo potencial futuro, mais do que pelas perspectivas atuais.

As pessoas continuam esperando que o crescimento da China vá cair espetacularmente. Eu acho que o país está um pouco superaquecido e pode desacelerar um pouco, mas, por uma série de razões, acho que o crescimento não vai cair muito. A China vai continuar crescendo. O nível de investimento e a margem de crescimento ainda são substanciais.

O que veremos em relação à China é que ela enfrentará problemas que não teria não fosse pelo seu enorme sucesso. As pessoas olham para a China e para a sua competitividade e não enxergam os problemas que estão surgindo. Por exemplo, há centenas de milhões de pessoas do interior da China mudando-se para a costa, para as zonas quentes da economia. Isso é um grande problema para o governo. O antigo sistema local, no vilarejo, de cuidar das pessoas, uma espécie de seguridade social, está morrendo. As pessoas começam a exigir que o governo atue pela seguridade social. A China enfrenta ainda um crescente problema para satisfazer sua necessidade de energia. Toda vez que você vê um chinês no exterior, ele tenta assinar um acordo de energia.

Além disso, em lugares como Xangai, talvez a cidade mais fascinante do mundo para negócios, eles estão cada vez mais relutantes em aceitar micromanagement de Pequim. As autoridades chinesas enfrentam assim um paradoxo: para continuarem como estão e seguir no poder, precisam delegar algum poder, mas isso é alheio ao modo como a China vem sendo governada há muito tempo.

Assim, a China oferece imensas oportunidades, mas, se tem as vantagens de um sistema semicapitalista, ela também está começando a enfrentar as desvantagens disso, sendo o desemprego a mais óbvia. O que vemos na China é uma série de mudanças muito complexa.

Os europeus, e o mundo em geral, parecem temer a China. O sr. tem medo da China?

Major: Não. Economicamente, as pessoas estão preocupadas com a competitividade da China. E eles são muito competitivos pois têm um infindável estoque de mão-de-obra barata e um volume muito grande de investimento externo direto, entre US$ 50 bilhões e US$ 60 bilhões por ano. Ter o desenvolvimento financiado externamente, e não internamente, é um poderoso fator de crescimento. E isso traz consigo uma grande quantidade de tecnologia para a China.

Eu compreendo perfeitamente por que as pessoas estão preocupadas com a China, e elas estão certas. Em algumas áreas não seremos capazes, nós europeus e talvez nem os EUA, de competir com a China. Mas talvez a América Latina consiga. A América Latina tem uma estrutura de custos potencialmente muito eficiente. Por isso, a região tem menos motivos para se preocupar. Mas a China também começara a enfrentar problemas.

O que o sr. diria a um trabalhador que perdeu o emprego devido à competição chinesa?

Major: Muitas pessoas vão perder seus empregos também pela competição européia ou brasileira. Vivemos num mundo globalizado agora e, a não ser que optemos pela proteção - e nesse caso as pessoas que sofrerão mais serão sem dúvida as que têm menos -, encontraremos em alguma parte do mundo alguém que possa competir com o que tradicionalmente fazemos. Estamos vendo muito isso na Europa agora. Não só por causa da China nem da Índia, mas por causa do Leste Europeu.

Há um grande fluxo de investimento industrial da Europa Ocidental para a Europa Central e Oriental. E a razão é evidente: o custo de empregar um engenheiro é nove vezes maior em Paris ou Londres do que na Eslováquia. E estamos falando de engenheiros com qualificações comparáveis. Você não pode enfrentar isso. E, se você quiser ter um mercado globalizado sem controles de câmbio, com livre fluxo de investimentos e capitais, há áreas nas quais um país será mais competitivo que outros.

Assim, não há uma resposta simples para quem perde seu emprego, a não ser tentar impor proteções, o que pioraria ainda mais as coisas em vez melhorar, pois os outros retaliariam.

O que é que o Brasil mais quer agora? Eu acho que é um final bem-sucedido da rodada de Doha [da OMC], com a abertura do mercado europeu de produtos agrícolas para as exportações brasileiras e latino-americanas. Se as pessoas quiserem proteção, é uma boa razão para não abrir esses mercados.

O sr. está otimista em relação às negociações de Doha?

Major: Moderadamente. Essas coisas sempre se arrastam até o último minuto, com as pessoas dizendo que é impossível, já que elas querem o melhor acordo possível para si. Mas acho que haverá uma conclusão. Será que ela atenderá as nossos melhores expectativas? Duvido. Será que realizará nossos maiores temores? Duvido também. Haverá progresso, talvez progresso significativo, mas não tanto quanto gostaríamos.

Os chineses estão sendo muito agressivos em garantir fornecimento de commodities e energia. Isto não vai se chocar com interesses americanos e europeus?

Major: Isso já ocorre. No caso do petróleo, por exemplo, os EUA consomem um quarto do petróleo mundial. E importam boa parte do petróleo que consomem. Há uma competição tremenda por matérias-primas, e isso vai continuar. Mas mesmo em outras commodities, como minerais, haverá crescente competição por recursos que são exauríveis. Os preços vão refletir isso. O chineses estão mirando no longo prazo, eles pensam em termos de geração e estão tentando garantir suprimento de energia e commodities agrícolas com acordos de longo prazo. Acho que outros países farão o mesmo.

Então os preços de petróleo e commodities seguirão altos?

Major: Sim. Há uns quatro anos um ministro do petróleo do Golfo Pérsico me disse que estava plenamente satisfeito com o petróleo entre US$ 22 e US$ 26 [o barril]. Se fosse para US$ 30, seria ótimo. O dólar caiu nesse período, mas hoje estamos com preços acima de US$ 60. E não vejo nenhuma razão para que caiam significativamente, a não ser em breves períodos, por alguma queda na demanda ou alta na produção. Pelo contrário, acho que o preço do petróleo vai endurecer pelo resto desta década, conforme as pessoas forem percebendo que é um recurso finito e que a demanda cresce rapidamente.

Considere apenas o que o crescimento da China fez pela demanda nos últimos anos. Acrescente a isso o crescimento de Índia, Brasil e outros países emergentes pelos próximos dez anos. As melhores estimativas dizem que, em 20 anos, a demanda por petróleo vai crescer 50%. E não teremos uma alta de 50% na produção nem acharemos novas reservas de petróleo que satisfaçam essa demanda. Junte isso, e teremos uma pressão nos preços.

O sr. não confia em políticas de substituição do petróleo?

Major: Elas não chegarão em tempo. Dá para aumentar a oferta de gás, a fonte mais óbvia, mas ela não satisfará a crescente demanda. Fala-se em energia nuclear. Mesmo onde isso for aceitável, e nem todos a acham aceitável, há um intervalo muito grande entre o investimento e a geração de energia. Há a energia solar, mas estamos longe ainda da tecnologia necessária para um uso amplo. Há as células fotovoltaicas, mas estamos ainda a bilhões e bilhões de dólares de investimentos antes de ser uma tecnologia rentável. Tudo isso terá um papel com o tempo, mas as projeções são de que a fatia do petróleo em 20 anos será idêntica à de hoje.

Assim assim, o sr. acredita num revival da energia nuclear?

Major: Acho que haverá, mas não sei o quão grande será. Alguns países vão voltar a investir em energia nuclear, simplesmente por não verem outra alternativa. Isso deve acontecer na Europa e talvez nos EUA.

O Brasil deve se tornar auto-suficiente em petróleo este ano. Isso é uma vantagem na competição com a China e a Índia?

Major: Certamente é uma vantagem substancial, junto com a base mineral de vocês. É uma das razões pelas quais podemos ficar confiantes em relação ao futuro do Brasil. O Brasil está se tornando uma democracia estável, e isso também é uma vantagem. Os chineses ainda não têm isso. Vocês têm ainda outras vantagens, como uma força de trabalho potencialmente grande, se treinada corretamente, e um grande território, o que reduz o custo da terra, que é muito alto na Europa. Há muitas razões, caso haja estabilidade política e políticas governamentais que enfrentem as deficiências atuais, para estar otimista com o futuro do Brasil.

Há razões políticas também. Quando o presidente Lula esteve em Londres, ouviu de todos os partidos que eles apóiam a pretensão do Brasil de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Achamos que o Conselho está ultrapassado e que deve ser acrescido de alguns países, que são Brasil, Alemanha, Japão, Índia e talvez África do Sul ou Nigéria. Isso é uma evidência da percepção diferente quanto a esses países em relação há 20 anos.

Falamos de Brasil, China e Índia. O que o sr. acha da Rússia?

Major: A Rússia é muito diferente da velha União Soviética. Militarmente não é mais uma ameaça significativa. Economicamente, desde que você encontre um bom parceiro, é um lugar muito bom para alguns tipos de investimento. E as pessoas estão tendo um retorno muito maior na Rússia do que na China. A dificuldade é encontrar um parceiro satisfatório.

Começamos a ter alguns problemas políticos na Rússia. O presidente [Vladimir] Putin reverteu algumas das reformas pró-mercado feitas pelo presidente [Bóris] Ieltsin. Por exemplo, as regiões russas voltaram a depender do Kremlin para o seu orçamento. Eles não têm um sistema legal apropriado, certamente não têm uma imprensa livre. É um retrocesso.

Economicamente, a Rússia tem setores com potencial muito grande, nos quais eles são muito ricos, como minerais e energia. A chance de crescimento econômico significativo na Rússia é real, mas algumas das orientações políticas estão indo na direção errada nos últimos três ou quatro anos.

Há ainda a perspectiva de que a Rússia faça um acordo com a União Européia. Eles não vão entrar para a UE, mas acho que podem fazer um acordo de acesso aos mercados europeus em troca de fornecimento de energia. Isso beneficiaria os dois lados e pode acontecer nos próximos anos.

Quais são as principais ameaças à economia mundial?

Major: As maiores ameaças políticas são uma guerra séria em algum lugar -o mais óbvio é o Oriente Médio -, que abale a confiança e as projeções, e a expansão do terrorismo, que ele não seja contido. A maior ameaça econômica é um descolamento entre a demanda e a oferta de energia. Esse é um risco mais de longo prazo. No curto prazo, o mecanismo de preços deve ajustar isso.

Há ainda muita liquidez hoje, e não vejo um risco inflacionário sério. Com os chineses produzindo tanto com uma margem tão pequena, você tem um efeito desinflacionário no sistema mundial. Eles cortam as margens de lucro em todo lugar, o que é desinflacionário. De 1945 a 1990, o maior problema da economia mundial foi a inflação recorrente. Há apenas 20 anos, a América Latina embarcou num período de inflação altíssima. Hoje a inflação está em um dígito em quase toda a região. É um sucesso extraordinário, devido em parte a políticas internas e em parte ao ambiente mundial.

Vejo um problema real em fazer com que as partes mais pobres do mundo não se tornem relativamente ainda mais pobres. Isso requer mais atenção. É importante fazer isso por razões morais, pois não é aceitável que metade do mundo viva com menos de US$ 2 por dia. Além disso, no longo prazo, tirar pessoas da pobreza cria um mercado mundial maior. É a coisa certa a fazer, mas é também do interesse dos países ricos.

Como fazer isso?

Major: Há muitos modos. A Rodada Doha é muito importante. Se der certo, serão acrescentados bilhões de dólares ao crescimento mundial, o que tirará milhões da pobreza. Isso provavelmente fará mais bem do que o aumento da ajuda internacional, ainda que haja motivos também para ampliar a ajuda, desde que se controle como ela é gasta. Mas tudo isso é mais fácil de dizer do que de fazer.

Falamos pouco sobre a economia americana. Isso significa que EUA estão perdendo espaço?

Major: Não, mas outras partes do mundo estão crescendo dramaticamente, como a China e a Índia, e por isso os EUA são um pouco menos dominantes hoje. Nos últimos 60 anos, a economia mundial cresceu puxada por três motores: EUA, Japão e União Européia. Em breve os motores serão seis: os três de antes mais China, Sudeste Asiático e Índia. E talvez alguns outros países emergentes, como o Brasil. Isso significa que não teremos mais uma nação tão dominante. Os EUA continuarão os maiores, e são infinitamente mais poderosos em termos militares, mas serão os primeiros entre pares. Isso deixa o mundo mais equilibrado, menos dependente de uma ou duas economias, e isso é muito bom.

Os EUA vão continuar bem? Acho que sim. É uma economia muito flexível, que sai de dificuldades muito mais rapidamente do que as economias européias, devido ao seu mercado de trabalho flexível. Se a Europa entra em recessão, trazê-la de volta ao crescimento é um processo longo e lento.

O sr. acredita num conflito militar entre os EUA e o Irã?

Major: Não. As manchetes de jornais são muito, muito prematuras. O Irã diz que não está desenvolvendo um programa de armas nucleares, mas os fatos dizem que provavelmente está. O melhor modo de parar isso é com medidas internacionais. Não sanções, mas um embargo a investimentos. Para satisfazer suas necessidades internas, o Irã precisa aumentar muito a sua produção de petróleo. E não pode fazer isso sem investimentos externos. Assim, o modo melhor de conter o Irã é com um embargo a investimentos, mas ainda estamos longe disso.

Autor: Célia de Gouvêa / Humberto Saccomandi
Email do Autor: n.d.

Fonte: Valor Econômico

Fonte:
http://www.revistadigital.com.br/tendencias.asp?NumEdicao=346&CodMateria=3141

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