09 março, 2006

Massa e elite racham sistema universitário francês

04/03/2006 - 16h33


LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
Especial para a Folha de S.Paulo

O ensino universitário francês integra-se no maior ministério do governo, o da Educação Nacional. Do bedel da escolinha de Caiena, na Guiana Francesa, aos prêmios Nobel que ensinam no Collège de France, em Paris, um milhão de funcionários do mesmo ministério se repartem pelas escolas e universidades da França metropolitana e dos territórios ultramarinos.

No total, os gastos com a educação nacional representam 7% do PNB da França, proporção que situa esses investimentos acima da média dos países desenvolvidos.

Estribado na doutrina republicana e centralista herdada da Revolução de 1789, o ensino público facilitou durante décadas a integração social no país e o destaque internacional dos pesquisadores franceses. Seguindo seus princípios cardeais --laicidade, gratuidade e obrigatoriedade--, a escola primária e secundária desemboca em duas esferas paralelas de ensino superior.

A primeira, mais extensa e abrangente, formada pelas 92 universidades públicas, recebe a maior parte dos estudantes. Note-se que, depois da crise de Maio de 68, as grandes universidades foram divididas em unidades menores, reagrupando apenas alguns departamentos.

Desse ponto de vista, não há mais na França instituições universitárias reunindo faculdades de todas as disciplinas, sob a autoridade de um reitor num único campus, como é o caso da USP, da Universidade Federal do Rio de Janeiro ou da Universidade Federal de Minas Gerais ou da maioria das universidades americanas, européias e asiáticas.

A segunda esfera, mais centralizada e seletiva, corresponde às "escolas" de ensino superior (Escola Normal Superior, Escola Politécnica, Escola Nacional de Administração). Admitidos por um concurso mais rigoroso e submetidos a controles intensificados, os diplomados das "escolas" formam, desde o final da Segunda Guerra, a elite intelectual e administrativa do país.

Tanto nas universidades quanto nas "escolas", o financiamento das pesquisas depende do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), cujas funções inspiraram no Brasil a criação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

No contexto das reformas pós-Maio de 68, as "escolas" iniciaram um processo de descentralização, deslocando parte de suas atividades de Paris para metrópoles regionais, como Lyon ou Grenoble. Tais reformas não impediram as crises sucessivas que sacodem o sistema educacional francês de cima a baixo.

Na base da rede pública, as revoltas que incendiaram os subúrbios de Paris no mês de novembro mostraram, de maneira estrepitosa, que a escola republicana perdeu boa parte de sua capacidade de integração social. Num contexto de desemprego e de multiculturalismo acentuados pelas correntes imigratórias, comprovou-se o fiasco dos métodos tradicionais e das repetidas mudanças no ensino.

No topo do sistema, a situação também é difícil e contribui para difundir a idéia do declínio da França.

Na realidade, os especialistas vêm apontando há bastante tempo os percalços da educação pública. Na ausência de enquadramento pedagógico adequado, a política de escolarização mais ampla levou a uma "massificação" das escolas secundárias e das universidades.

Organismo sem estratégia

Paralelamente, as "escolas" guardaram seu perfil elitista, travando a mobilidade social. Um estudo recente mostrou que os executivos ou profissionais liberais representam apenas 14% dos franceses que têm filhos entre 18 e 25 anos. Mas os filhos dessas categorias sociais representam 62% dos alunos das "escolas" e 35% dos estudantes das universidades. No campo da pesquisa, o CNRS tornou-se um organismo difícil de gerir e desprovido de estratégia. O governo do premiê Dominique Villepin anunciou a dotação de mais 1 bilhão de euros para a pesquisa em 2006 e a criação de 3.000 novos postos de pesquisadores.

Mas o CNRS está paralisado por uma disputa interna entre diretores, entre a reorganização em torno de uma Agência Nacional de Pesquisa e os defensores de mais autonomia para os diferentes laboratórios.

No horizonte mais próximo, o desenvolvimento de outro pólo universitário na região parisiense em que se situa a Biblioteca François Mitterrand, que já está sendo chamada de "novo Quartier Latin", confirma o empenho do governo em consolidar Paris como um grande centro universitário europeu.

Noutra escala, há planos mais ambiciosos. O processo dito "Sorbonne-Bolonha", lançado na universidade parisiense e na universidade italiana, iniciou uma equiparação de estudos que desemboca num espaço integrado do ensino superior europeu. Invocando a memória dos monges medievais e dos humanistas do Renascimento --"que trabalhavam para seus contemporâneos e para as futuras gerações"--, o historiador e dirigente polonês Bronislaw Geremek e o biólogo francês J.D. Vincent propõem um novo avanço.

Num artigo recente no "Le Monde", eles defendem a criação, pelos países da União Européia, de uma grande universidade baseada em Estrasburgo. Nessa cidade francesa, que é sede do Parlamento Europeu, a nova "Universidade da Europa" ajudaria a coordenar as pesquisas e a estimular a mobilidade dos estudantes e professores do continente.

Luiz Felipe de Alencastro é professor na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras), entre outros livros.

Fonte:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18423.shtml



Leia mais

Universidades fora de foco
Quanto vale ou é por quilo?
Não existe almoço grátis
A missão reguladora

Nenhum comentário: