01 dezembro, 2005

Tráfico incendiou passageiros de propósito

Rio, 01 de dezembro de 2005
O que eles tinham com isso?

"Abram a porta, pelo amor de Deus! Minha filha é uma criança!” O grito de Wânia da Lúcia Barbosa, de 36 anos, não será esquecido pelos passageiros que conseguiram escapar com vida, anteontem à noite, do atentado contra o ônibus da linha 350 (Passeio-Irajá). Cinco pessoas inocentes, entre elas Wânia e sua filha Vitória, de 1 ano e um mês, que ela tentou em vão salvar, foram queimadas vivas por um grupo de 12 traficantes por volta das 22h30m, em Brás de Pina. Há ainda 14 pessoas feridas, duas delas correndo risco de morrer. Para vingar a morte de um bandido pela PM ocorrida no mesmo bairro no final da tarde daquele dia, o bando interceptou o ônibus que levava para casa estudantes e trabalhadores, jogou gasolina e ateou fogo.
O corpo de Vitória foi o último a ser descoberto pelos peritos porque Wânia, que voltava de mais um dia de trabalho como auxiliar de limpeza, deitou-se sobre a filha para protegê-la das chamas. Também não tiveram tempo de pular pela janela — a única forma de fugir da morte já que as portas do ônibus foram fechadas — outras três pessoas. Uma delas é o gerente de supermercado Luiz Antônio Carvalho Vieira, de 52 anos. Outras duas vítimas só poderão ser identificadas por meio de exames da arcada dentária ou de DNA.
‘Senti muita falta de ar’, diz sobrevivente
O ato covarde dos bandidos causou indignação em todos. Até então, a morte de civis em confrontos urbanos acontecia, freqüentemente, em conseqüência de balas perdidas. De acordo com um levantamento do GLOBO, feito com base em registros policiais noticiados pela imprensa, já que a Secretaria de Segurança Pública não dispõe de estatísticas oficiais sobre balas perdidas, 172 pessoas foram baleadas entre janeiro e novembro de 2003: 42 morreram e 130 ficaram feridas. O episódio de ontem escreveu um novo capítulo na história de violência da cidade
— Pensei que fosse mais um assalto. Mas eles entraram com garrafas cheias de gasolina e começaram a molhar o chão do ônibus. Mesmo assim, só me dei conta de que iam nos queimar vivos quando vi a chama vindo em minha direção — contou Roberta, estudante de jornalismo, de 25 anos, que voltava da faculdade, e quebrou o braço direito ao pular a janela do ônibus. — Se tinha outra vida, gastei ontem.
Após um dia cansativo de trabalho, a funcionária da Marinha Karina de Araújo Duarte, de 20 anos, estava dormindo e acordou com a ordem de alguém lhe dizendo “desce”. Do lado de fora, ela viu muitos moradores e pedestres tentando ajudar as vítimas, oferecendo água.
— Sentia muita falta de ar e meu rosto estava preto. Engoli muita fumaça. Ao sair, bebi e joguei água no rosto, que ardia muito — afirmou Karina, que teve queimaduras de primeiro e segundo graus na face.
Entre os feridos, um dos casos mais graves é o da estudante de pedagogia Viviane de Souza Eusébio, de 21 anos. Internada no Hospital do Andaraí, ela teve 50% do corpo queimados. Viviane teve queimaduras de terceiro grau nas costas por ter sofrido uma exposição prolongada ao fogo. Ela precisará fazer enxertos de pele.
Só quem teve reflexo muito rápido conseguiu sair ileso.
— Nem tive tempo de pensar. Meu namorado me puxou e eu saí correndo com ele. Senti minha sandália derreter no pé — lembrou, aos prantos, a operadora de telemarketing X., de 20 anos, afirmando que o namorado, Igor dos Santos Pereira, foi um verdadeiro herói porque, mesmo em pânico, teve presença de espírito para arrombar a porta do ônibus, permitindo a saída de várias pessoas.
Igor disse que jamais esquecerá as imagens que viu:
— Uma fumaça negra envolvia o ônibus em chamas e muita gente corria com o corpo pegando fogo.
— Eu gritava que havia criança no ônibus, mas os bandidos não ligaram para isso. Meu namorado tentou voltar para retirar a criança, mas era tarde demais — disse X.
A menina que Igor não pôde salvar era Vitória. Mas quem não se perdoa é o pai da menina, Rogério de Oliveira Mendes, de 27 anos, que está com 45% do corpo queimados no Andaraí e só ficou sabendo no hospital da morte da filha. Ele voltava do trabalho com Wânia — os dois trabalhavam juntos na limpeza do prédio da Previ em Botafogo — e tinham pegado Vitória com o sogro para levá-la para casa. O casal desceria dois pontos depois do local onde aconteceu o atentado. Geralmente, os dois voltavam para a casa caminhando por 20 minutos. Ontem foi diferente. Por medo da rua conflagrada pela operação da PM em que morrera o traficante, eles se sentiram mais seguros embarcando num ônibus. Apaixonados e ainda comemorando a pequena casa recém-construída com muito esforço em Brás de Pina — e a laje do quarto de Vitória feita pelo pai nas férias de abril — Wânia e Rogério se preparavam para passar o primeiro Natal em companhia de toda a família. Pais e irmãos dele e de Wânia e o filho dela do primeiro casamento, Juan, de 11 anos.
— Nunca deixavam de pegar a Vitória na casa do avô porque não queriam perder nenhuma gracinha da menina, que começava a andar — disse Wanda, irmã de Wânia, lembrando que o dia de ontem acabou em tragédia, mas começou como todos os outros, em que irmã deixava a filha com o avô com as mamadeiras prontas para não dar trabalho a ninguém.
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