13 dezembro, 2005

A linguagem burocrática e o poder

18/11/2005
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Recentemente, o articulista Roberto Pompeu de Toledo, da revista "Veja", fez um interessante ensaio sobre as relações entre o poder, a burocracia e o emprego da língua portuguesa. Baseado num texto que respondia a uma solicitação de aposentadoria ao INSS, o ensaísta chega à conclusão de que a linguagem da burocracia estatal simboliza "o massacre cotidiano a que o Estado submete os cidadãos, os mais humildes em primeiro lugar".

Ora, o conteúdo da carta em questão era o seguinte: "Para dar andamento ao processo do Benefício em referência, solicito-vos comparecer no endereço: Av. Santa Marina 1217, no horário de 07:00 às 15:00, para que as seguintes exigências sejam cumpridas:

- retirar a carteira profissional que se encontra em seu processo para que empregador atualiza as alterações de salarios em vista da última anotação foi 1990 e o salario de contribuição esta divergente da ultima alteração

- recolher o 13 referente ao período de 1995 a 2004 que não foram recolhidos e 1 de ferias conforme consta os meses a serem recolhidos na carteira profissional

Comunico-vos que vosso pedido de Benefício será indeferido por desinteresse, se não comparecerdes dentro de 10 dias a contar desta data.

Deveis apresentar esta carta no ato do comparecimento" (sic).

Bem, o que mais impressiona o colunista é a parte final da carta, em que soa ameaçador o trecho "se não comparecerdes dentro de 10 dias...". Segundo ele, o uso da segunda pessoa do plural, o pronome "vós", de todo inusual no português moderno, serve mesmo para assustar o contribuinte, para ameaçá-lo.

De fato, a linguagem formal serve para assinalar distanciamento. Chamar alguém de "senhor" ou "senhora", por exemplo, nada tem a ver com a idade da pessoa em questão, muito embora sintamos isso freqüentemente. O tratamento formal indica ausência de intimidade, o que é útil em muitas situações da vida social. As relações de respeito mútuo se traduzem por palavras de cortesia e de formalidade. É claro que, se for usado em situações que não o requeiram, o registro formal pode soar como manifestação de frieza e até de antipatia.

No caso da linguagem burocrática, o tom formal é, de fato, o mais desejável. Os documentos devem ser escritos em linguagem impessoal, de modo que se ressaltem apenas as informações. O que salta aos olhos no texto do documento em questão é o desejo de usar uma linguagem extremamente formal e, ao mesmo tempo, a grande dificuldade (ou a impossibilidade) de fazê-lo. O texto contém erros grosseiros de grafia e de concordância, mas termina com o verbo corretamente conjugado no futuro do subjuntivo da segunda pessoa do plural. Essa mistura de registros parece sintoma de uma certa percepção da língua que me parece digna de nota.

Muitos dos usuários da língua desconhecem até mesmo as normas de grafia. Não me refiro aqui a construções sintáticas, pontuação ou regência, mas a uso de acento na sílaba tônica das paroxítonas terminadas em ditongo, por exemplo. Veja-se a palavra "salário", repetidas vezes empregada no texto acima sem o referido sinal diacrítico, bem como a palavra "férias", igualmente desprovida de seu acento gráfico.

Que dizer de uma construção sintática como "conforme consta os meses a serem recolhidos na carteira profissional"? Ora, ao empregar "conforme consta na carteira profissional", "os meses a serem recolhidos" já estão subentendidos (é isso o que consta na carteira profissional, daí o uso da conjunção "conforme", que quer dizer "em conformidade com o que foi dito antes"). Por outra, também é impreciso dizer "os meses a serem recolhidos", uma vez que o que se recolhe é um valor, não um mês.

Vê-se que o texto foi escrito por alguém que não tem muita intimidade com a linguagem formal, dado que são reproduzidas estruturas "quebradas", típicas da fala descomprometida, o que dá ao texto um aspecto claudicante. Esse mesmo redator, entretanto, esmera-se em empregar a segunda do plural corretamente.

A percepção da língua que subjaz a uma escrita como essa é a de que a língua é algo externo ao falante. Existem termos que se devem usar para exprimir respeito ou formalidade. É o que popularmente se chama de "falar difícil". Sem entender exatamente o que dizem as palavras, as pessoas percebem esse tipo de discurso como algo que emana do poder. A impenetrabilidade do discurso exerce uma função pragmática: a de demarcar espaços de poder.

O famoso "economês", alcunha do discurso hermético dos economistas, é outro exemplo desse mesmo tipo de situação. É uma linguagem que comunica não uma informação objetiva, mas um sentido subjetivo, subliminar.

Entretanto, ao desobedecer à norma culta do idioma, a linguagem burocrática da carta do INSS parece falhar nessa "missão" (o que não ocorre no "economês", por exemplo). Resta um discurso a um só tempo pretensioso e ingênuo. Pretensioso na intenção, mas ingênuo na elaboração. Em suma, um discurso que dificilmente vai "humilhar" alguém (como imagina Pompeu de Toledo) até porque lhe faltam os atributos mínimos para tanto. Registre-se, porém, que talvez a intenção de quem compôs o texto fosse mesmo a de impor o medo.

Na mesma chave de entendimento está o uso do chamado "gerundismo", cujo sentido se produz na estrutura, não nas palavras em si. Quando ouvimos uma frase do tipo: "Vou estar transferindo a sua ligação para o setor de relacionamento com o cliente", compreendemos esse gerúndio não como ação contínua (a ação de transferir não tem esse aspecto), mas como uma espécie de fórmula de atendimento, cujo sentido terrível é o de que estamos sendo enredados por um sistema em que o poder não tem face (mais ou menos como a burocracia). Quem ainda não leu "O Processo", de Franz Kafka, que o faça o quanto antes!

Thaís Nicoleti de Camargo
Thaís Nicoleti de Camargo é autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br




Leia mais um post sobre o assunto neste blog:

Se podemos complicar para que simplificar?



Comentário:

Há pelo menos 25 anos atrás, minha avó, já me contava histórias de seu irmão, muito orgulhosa dele por sinal, que formara em direito na então escola de Direito particular do Rio de Janeiro, que mais tarde se tornou à escola Federal de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Naquela época, ele viajava de Baependi (MG) para o Rio de Janeiro, de ônibus, e em estrada de terra. Ele já ia lendo os livros durante a viagem.

Meu ‘tio’ (tio-avô) como ela gostava que o chamássemos, era uma pessoa simples, nunca aprendeu a dirigir. Sua esposa (tia Teresinha) é que dirigia para as viagens familiares. (Me lembro uma vez que peguei carona com eles, fiquei apavorado quando numa curva, ela cortou tanto o trajeto, que acabou passando pelo matagal que ficava mais ao lado do acostamento, saindo do outro lado da curva... ufa!).

Meu “tio” era uma pessoa muito humana, aposentou-se como juiz em Itanhandu, sul de Minas Gerais. Mudou-se para lá, por questões pessoais. Sentiu-se magoado com os cidadãos de Baependi onde nasceu. Nunca mais voltou aquela cidade. Segundo minha avó, depois de construir uma escola municipal e um hospital, que leva o nome de Nossa Senhora de Mont-Serrat. Nunca aceitou ser tratado diferentemente numa fila de banco, mesmo depois de aposentado. Dizia minha avó que parte de seu salário de juiz já era destinado para receber pessoas simples que vinha até ele pedir ajuda. Ele as escutava e fazia a sua parte ajudando-as de alguma maneira. Aprendi com minha avó uma coisa muito importante: que ao chegarmos nesse nível de relação com as pessoas mais simples, é grande nossa responsabilidade para com elas. Todo poder exige de nós responsabilidades sociais, humanas, enfim, mais ética. Não poderíamos nos esquivar desta responsabilidade, era o “preço” de uma conquista e dos esforços pessoais. Manter-se digno disso, era o outro lado não visto por quem somente vê a figura do juiz em seu labor.
Candidatou-se a prefeito da cidade, perdendo o pleito. Deu o nome da escola a uma personalidade local, mas durante a revolução de 1964, o nome da escola foi alterado para algum nome de General do Exército. Coisas da vida...

Quando morava em Varginha, lecionou na faculdade local. Escreveu o primeiro livro sobre o divórcio no Brasil (“Do casamento ao Divórcio”), que me lembro muito bem, saiu até numa reportagem do Fantástico. Nunca foi um homem de criar uma doutrina no direito civil. Mas tinha um objetivo muito simples na vida: quando era juiz, verificava a necessidade de melhorar as pedições, enviadas para os juízes pelos advogados recém-formados. Imaginou então um livro muito pedagógico sobre a questão. Resolveu escrever então uma série de livros didáticos para esse público carente de ajuda. Criou uma série de livros de “Comentários sobre o Direito Civil”. Todos muito didáticos. Tão didáticos que muitos professores não os recomendam, pois acham muito fácil. Mas era essa a sua intenção, facilitar a vida do estudante e dos recém-formados.

Como eu disse antes, muitos professores não recomendam tais séries de livros. Minha avó, quando viva, isto há uns 25 anos atrás já me dizia. Que apesar de serem didáticos, muitos têm vergonha até de mostrar que os utilizam. É de fato um BEABÁ..

Há alguns anos atrás, quando eu era síndico de um condomínio, por onde fui administrador por oito anos consecutivos, tive que usar dos serviços de um especialista em condomínios. Este advogado também é professor, ele ainda leciona na UNA, aqui em Belo Horizonte. Um dia foi até seu escritório, num prédio bonito na rua Tupis, logo de frente ao Shopping Cidade. Fiquei na sala de espera. Havia nesta sala vários livros de direito. Procurei pelos livros de meu ‘tio“ e não os vi. Fui chamado pela secretária para uma ante-sala. Também havia vários livros com capas “envernizadas” brilhantes, procurei novamente o do meu ‘tio’ e também não os vi. Finalmente fui chamado a sala do advogado. Sentei-me numa cadeira à frente de sua mesa, novamente em torno da mesa vários livros nas estantes em sua volta, de muitos autores de direito conhecidos – doutrinadores - mais uma vez meus olhos percorreram em zigue-zague as estantes do escritório. Meus olhos já estavam acostumados ao padrão de arte das capas dos livro do meu ‘tio’. Nesta busca minuciosa e rápida pelas estantes, novamente não os encontrei.

Procurava a confirmação da história que minha avó me contava, de que muitos advogados, têm vergonha de admitir que lêem tais livros. Então foi que comecei a explicar meu caso ao distinto advogado, em números ele não era muito bom, pois tive que ajudá-lo no computador a compor uma tabela de juros-sobre-juros no Excel. Num golpe de sorte, notei o livro de capa muito surrada do meu ‘tio’ em cima de sua mesa, bem perto dele. Era um livro muito, ou seja, muito usado, do contrário de todos os livros que havia visto em todas as estantes anteriores. Fiquei o livro de cabeceira do advogado, agora, com um ar de satisfação, lembrei de meus já falecidos avó Isolina e ‘tio” Toninho.
Ah, os livros são conhecidos com “Levenhagen” – Antônio de Souza Levenhagen. É só conversar com qualquer aluno iniciante – após 3o. Período - e perguntar do valor que estas preciosas jóias didáticas tem para com eles. Não adianta perguntar para advogados ‘muito’ inteligentes...”.

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