12 maio, 2006

Uti possidetis solis

Diante dos excessos de Evo Morales, cujas ações vão engordando a tensão diplomática entre Brasil e Bolívia, é bom buscar alento na história, que costuma emagrecer o futuro de homens com idéias pouco originais.

O Acre é hoje um estado brasileiro. Mas isso nem sempre foi assim. O Acre já foi boliviano. A região - hostil, distante da capital La Paz e então inabitada - começou a ser ocupada por brasileiros durante o chamado ciclo da borracha, em meados do Século XIX. Depois de muitas disputas que avançaram ao início do século XX, brasileiros e bolivianos chegaram a um acordo, articulado pelo Barão do Rio Branco, que em 1903 usou um misto de diplomacia e pressão militar para convencer os bolivianos a entregar o Acre em troca de territórios brasileiros do Estado de Mato Grosso, mais a importância de 2 milhões de libras esterlinas (algo hoje equivalente a pouco menos de US$ 1 bilhão). Consta ainda que o Brasil também deu cavalos de presente à Bolívia, quando o acordo foi firmado.

O curioso é que o principio diplomático usado pelo Brasil e ratificado no acordo com a Bolívia à época foi o mesmo utilizado pelos portugueses nos tempos dos tratados de 1750 e 1777, assinados entre o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para acertarem suas diferenças fronteiriças na América Ibérica: o do "uti possidetis solis". Quer dizer: tem direito ao território quem o possui. Quem tem a terra contestada é o seu dono de fato.

Ou seja, em tese (apenas em tese, e certamente de uma maneira torta e de pouca chance de êxito à luz do direito internacional contemporâneo), o governo de Evo Morales pode vir a usar o mesmo princípio para justificar a tomada das instalações da Petrobras pelo Exército boliviano e a nacionalização das reservas de gás: "uti possidetis solis".

Leia nos posts abaixo a cronologia dessa história:

1867 - O atual Estado do Acre era uma possessão da América espanhola de acordo com os Tratados Hispano-Portugueses de 1750 (Tratado de Madrid), 1777 (Santo-Ildefonso) e 1801 (Badajoz). Após as independências da América Latina, o Brasil reconheceu aquela zona como boliviana através do tratado de limites de 1867.

1852 - Apesar de ser território boliviano, não havia qualquer ocupação por parte da Bolívia, em parte por ser uma região de difícil acesso por outro caminho que não a Bacia do Rio Amazonas. Em virtude da abundância da seringueira e do ciclo da borracha - que estava se iniciando - colonos brasileiros iniciaram a ocupação do Acre.

1867 - É firmado o tratado internacional de Ayacucho, pelo qual o Brasil considerava o Acre como território boliviano.

1877 - Com a revolução dos transportes nos países europeus e nos Estados Unidos, a borracha passou a ter um papel fundamental. Quase toda a borracha consumida no mundo saía da Amazônia, sendo que 60% era extraída do território acreano. A "imigração" de brasileiros atingiu grandes proporções, já que, fugindo da seca histórica de 1877/1879, que devastou o Ceará, milhares de cearenses partiram para a região atrás de uma alternativa de sobrevivência. Nessa época, o presidente da Bolívia, Aniceto Arce, foi alvo de um golpe de estado comandado pelo coronel José Manuel Pando que, derrotado, se refugiou no Acre. Foi só aí que os bolivianos e o governo de La Paz se deram conta de que a ocupação brasileira já era de grandes proporções.

1882 - Os cearenses fundaram o Seringal Empresa, que mais tarde veio a ser a capital do Acre. O governo de La Paz começou a organizar uma reação, já que, para os bolivianos, a situação praticamente repetia o que ocorrera na década de 1870 com a penetração de trabalhadores chilenos na área do Atacama atrás do salitre. A chamada Guerra do Pacífico (1879-1883) fez com que a Bolívia, derrotada, perdesse a sua única saída para o mar, tendo que aceitar ficar isolada dos oceanos do mundo.

1898 - A Bolívia enviou uma missão de ocupação para o Acre causando, em 1º de maio de 1899, uma revolta armada dos colonos brasileiros, que receberam o apoio do governo do Estado do Amazonas. Derrotados, os bolivianos foram forçados a abandonar a região.

1899 - Apesar da oposição do governo central brasileiro, que com base no tratado de Ayacucho ainda considerava o Acre território boliviano, o governador do Amazonas, Ramalho Júnior, mandou para o Acre uma unidade de mercenários comandados pelo espanhol Luis Galvez Rodrigues de Arias. Objetivo: evitar a volta dos bolivianos ao território. Galvez - que veio a ser chamado "Imperador do Acre" - partiu de Manaus em 4 de junho de 1899 e chegou à localidade boliviana de Puerto Alonso, que teve seu nome mudado para Porto Acre, onde proclamou a República do Acre em 14 de julho de 1899.

1900 - O governo central brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, enviou tropas que dissolvem a República do Acre em 15 de março. A tal "república" caiu, mas o território continuou ocupado por seringueiros brasileiros. Nesta época foi descoberta a existência de um acordo diplomático entre a Bolívia e os Estados Unidos estabelecendo que haveria apoio militar americano à Bolívia em caso de guerra com o Brasil. A Bolívia organizou uma pequena missão militar para ocupar a região. Ao chegar em Porto Acre, foi impedida pelos habitantes brasileiros de continuar o seu deslocamento, mais uma vez apoiados pelo governo do Amazonas, que enviou uma nova expedição. A Expedição dos Poetas, sob o comando do jornalista Orlando Correa Lópes, proclamou a Segunda República do Acre em novembro de 1900, tendo Rodrigo de Carvalho assumido o cargo de presidente. Um mês depois, em 24 de dezembro de 1900, os brasileiros foram derrotados pelos militares bolivianos e esta segunda república também foi dissolvida.

1901 - A Bolívia assina um contrato de arrendamento do Acre com um sindicato de capitalistas americanos e ingleses. Pelo contrato, o grupo, chamado de Bolivian Syndicate, assumiria total controle sobre a região, inclusive militar. Esse acordo deu ao governo boliviano a confiança para rechaçar militarmente - com o apoio dos americanos - qualquer intenção do Brasil em relação ao Acre.


1902 - Em 6 de agosto, um militar brasileiro chamado Plácido de Castro foi enviado ao Acre pelo governador do Amazonas, Silvério Néri, e iniciou a então denominada Revolução Acreana. Os rebeldes imediatamente tomaram toda a região, exceto Porto Acre, que somente se rendeu em 24 de janeiro de 1903. Três dias depois, 27 de janeiro, foi proclamada a Terceira República do Acre, agora com o apoio do presidente Rodrigues Alves e do seu ministro do Exterior, o Barão do Rio Branco, que ordenou a ocupação do Acre e estabeleceu um governo militar sob o comando do general Olímpio da Silveira. A notícia revoltou a população de La Paz que exigiu imediata resposta do governo boliviano. Tão grave soou a coisa que foi o próprio presidente boliviano à época, general José Manuel Pando Pando, quem tomou a si o comando de uma força que marcharia para o Acre para lavar a honra da Bolívia ofendida. A guerra era uma questão de tempo.

1903 - Antes que explodisse a batalha, entra em cena a diplomacia brasileira, comandada por Rio Branco, que estabeleceu duas frentes para o Brasil ter o Acre sem um choque militar com a Bolívia. Ele arregimentou o apoio da Casa Rothschild, de Londres, instituição financeira de históricas ligações com o Brasil, para que os banqueiros intermediassem um acordo com o Bolivian Syndicate de Nova York. Operação bem-sucedida, pois os americanos aceitaram uma compensação de 110 mil libras esterlinas para desistir do negócio com os bolivianos, o que enfraqueceu o lado do governo de La Paz. Por outro lado, Rio Branco fez questão de deixar claro para a Bolívia que o Brasil estava mesmo disposto a ir à guerra pelo Acre. Como demonstração de força, ordenou a mobilização de tropas federais em Mato Grosso e no Amazonas para que se deslocassem para o território do Acre. Um admirador exaltado da posição tomada pelo barão escreveu na imprensa à época: "Temos um Homem no Itamaraty". Assim, com essa articulada combinação de diplomacia e argumento militar, só restou ao governo da Bolívia retroceder e aceitar um acordo.

O ACORDO - Os governos do Brasil e da Bolívia assinaram em 21 de março de 1903 um tratado preliminar, ratificado pelo Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903. Neste, a Bolívia abria mão de todo o Acre em troca de territórios brasileiros do Estado de Mato Grosso mais a importância de 2 milhões de libras esterlinas. O principio sustentado pelo Brasil na sua demanda para com a Bolívia foi o mesmo utilizado pelos portugueses nos tempos dos tratados de 1750 e 1777, assinados entre o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para acertarem suas diferenças fronteiriças na América Ibérica: o do uti possidetis solis. Quer dizer, tem direito ao território quem o possui, quem toma a terra contestada é o seu dono de fato.

O Tratado de Petrópolis foi aprovado por lei federal de 25 de fevereiro de 1904, regulamentada por decreto presidencial de 7 de abril de 1904, incorporando o Acre como território brasileiro. O território do Rio Branco foi elevado à condição de Estado do Acre em 15 de junho de 1962.

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Fontes:

Wikipédia ( http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_Acre )

História: Voltaire Schilling ( http://educaterra.terra.com.br/voltaire/brasil/2003/11/12/001.htm )

História do Brasil: A República, volume V - Pedro Calmon - São Paulo, Editora nacional, 1956.

A conquista do deserto ocidental - Craveiro Costa - São Paulo, Editora Nacional, 1940.

Um paraíso perdido - reunião de ensaios Amazônicos - Euclides da Cunha - Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1976.

Rio Branco- Álvaro Lins - São Paulo, Editora Nacional, 1965

História das fronteiras do Brasil - Hélio Viana - Rio de Janeiro, Edição da Biblioteca Militar, 1948.


Fonte:
http://oglobo.globo.com/online/blogs/contrapeso/

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