02 maio, 2006

A crise é mesmo da Previdência?




Washington Novaes

Há poucos assuntos que se repitam tanto na comunicação quanto o da - suposta ou verdadeira - "crise na Previdência Social", o déficit entre o que o sistema previdenciário nacional arrecada e o que paga. Ainda neste começo do ano, o tema está aí, presente toda hora, com a informação de que, apesar da receita recorde em fevereiro (R$ 9,31 bilhões), o déficit chegou a R$ 2,44 bilhões no mês e R$ 7,2 bilhões no primeiro bimestre (11,4% mais que no primeiro bimestre do ano passado), projetando um déficit anual estimado em R$ 48,5 bilhões - que demonstraria a inviabilidade do sistema. Menor ênfase têm algumas informações positivas: a arrecadação em fevereiro cresceu 20,8% sobre o mesmo mês do ano passado, enquanto a despesa subiu 13,3%. E no mês houve uma recuperação - que é recorde histórico - de R$ 800,8 milhões, de dívidas de empresas estatais e privadas (em janeiro haviam sido recuperados outros R$ 498,8 milhões). Também não merece destaque o fato de que o sistema, só em janeiro, repassou R$ 1,231 bilhão ao Sesc, Senai, Sesi, Senac e ao Fundo Nacional de Educação.

É um tema espinhoso porque, se o pensamento for dominado pela lógica exclusivamente financeira, logo proporá que, para "consertar" a situação, se reduzam os aumentos do salário mínimo, que influem no pagamento das aposentadorias da maior parte dos beneficiários do sistema. Mas não levará em consideração numerosos outros fatores.

O primeiro deles é que o sistema foi concebido com uma arrecadação que proviria da União, das empresas empregadoras e dos próprios empregados, em proporções iguais. A contribuição da União foi esquecida, sem que os críticos do sistema a cobrassem, porque o pagamento significaria mais recursos oficiais para essa finalidade - e não para outras (convém lembrar que a União pagou, no ano passado, mais de R$ 140 bilhões em juros, quase quatro vezes mais que o déficit da Previdência no ano, que foi de R$ 37,6 bilhões).

O segundo fator esquecido é a progressiva informalização da economia. Hoje, quase 60% das pessoas com ocupação ou que trabalham por conta própria não têm carteira assinada, não contribuem - nem elas nem os empregadores.

Terceiro fator: o crescimento do número de beneficiários a partir de 1988, não só por causa do aumento da população, mas porque foram incorporados ao universo milhões de pessoas que nunca contribuíram para a Previdência, como os trabalhadores rurais. Não se discute o mérito da incorporação. Mas não houve previsão de dotações para compensar a nova obrigação. Hoje, o sistema tem 32 milhões de segurados, quase 18% da população nacional. E entre 1988 e 2002 o número de beneficiários passou de 11,6 milhões para 21,8 milhões, segundo Álvaro Sólon de França, auditor fiscal e ex-secretário-executivo do Ministério da Previdência. Como cada beneficiário estende sua renda em média a mais 2,5 pessoas, são mais de 50 milhões que dependem desses pagamentos. A tal ponto que em 3.733 dos 5.561 municípios os benefícios da Previdência superam as transferências do Fundo de Participação dos Municípios.

Também pouco se discute que, hoje, o estoque de dívidas de empresas estatais e privadas junto à Previdência está em R$ 250 bilhões, de acordo com Paulo César de Souza, vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores da Previdência Social. Não bastasse isso, entre 2003 e 2005, diz ele, a renúncia da Previdência a contribuições atingiu R$ 33,2 bilhões, enquanto a sonegação (estimada em 30% do total) teria chegado a R$ 88,8 bilhões. Para este ano, a renúncia prevista é de R$ 16 bilhões (equivalentes a 15% da receita de 2005). Mas, com tanto dinheiro a receber, a Previdência nem sequer conta com uma Procuradoria-Geral própria.

Um dos caminhos que vêm sendo trilhados para não aumentar o déficit é o da redução real e silenciosa dos benefícios dos aposentados que recebem mais de um salário mínimo por mês. Um caso que o autor destas linhas conhece de perto pode ajudar a entender. O beneficiário contribuiu durante quase 40 anos para a Previdência. Durante mais de 20 anos, sobre 20 salários mínimos, que era o limite para a aposentadoria. Num passe de mágica, entretanto, o limite foi baixado para 10 salários mínimos - mas sem devolver a quem contribuíra com mais o excesso de contribuição. Ao requerer a aposentadoria, em época de inflação mensal de mais de um dígito, seu benefício já baixou para 6,5 salários mínimos (e não 9, ou 90% da contribuição, que era o limite, porque a aposentadoria é calculada pela média das contribuições nos últimos 36 meses, sem correção da inflação). E, como a aposentadoria de quem recebe mais que o salário mínimo é sempre corrigida por índices muito inferiores ao do aumento do mínimo, agora está em menos de quatro salários mínimos. Se prosseguir nessa toada, chegará um dia a um salário mínimo - porque o INSS, solicitado, alega não ter pessoal para rever a aposentadoria e a Justiça não consegue obrigá-lo.

Alegam muitos analistas do déficit que a União não pode continuar a cobri-lo - mas sem examinar o quadro de renúncia previdenciária e fiscal, sem se deter na sonegação, sem dar igual tratamento a "pacotes" que beneficiam outros setores (vide, por exemplo, o recente "pacote" de mais de R$ 16 bilhões que socorreu o agronegócio). Alegam também que a crise do sistema previdenciário é universal, principalmente porque a esperança de vida cresceu muito em toda parte e os beneficiários recebem durante muito mais tempo, invalidando os cálculos feitos na época da instituição do sistema. Talvez acabem exigindo o fim do sistema. Ou a obrigatoriedade de morrer mais cedo.


Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.

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