12 maio, 2006

As Relações Humanas


Livro: As Relações Humanas - Sêneca
Autor: Sêneca
Artigo: "Lições para tentar uma vida mais feliz"
Regina Schöpke



Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo

Poucos filósofos conheceram tão de perto a glória e o poder como Sêneca (4 a.C. - 65 d.C), assim como poucos sentiram tanto na carne as artimanhas, as infâmias e as traições próprias da esfera política. Ele, que acreditava que a filosofia poderia trazer muitos benefícios aos homens de Estado e que a proximidade dos sábios poderia ajudar a curar os vícios humanos, aceitou a tarefa de ser preceptor de Nero (assim como Aristóteles fizera com o jovem Alexandre). Suas decepções, no entanto, o levaram mais tarde a abandonar a vida pública e a se dedicar inteiramente à filosofia. Infelizmente, depois de ter praticamente tido nas mãos o destino de Roma (como preceptor do imperador), Sêneca estava por demais enredado nas malhas do poder e, apesar de tentar manter-se distante, foi acusado de conspiração e condenado à morte pelo próprio Nero.

Foi nesse período de afastamento da vida política (e já com uma idade avançada) que Sêneca escreveu as Cartas a Lucílio, uma monumental obra na qual o filósofo trata dos mais variados temas sob a forma de 124 epístolas.

Não sabemos, de fato, se as cartas chegaram ao seu destinatário (um velho amigo e discípulo de Sêneca) ou se o filósofo utilizou-as apenas como um recurso literário. Porém, não resta dúvida de que se trata de uma obra cuja grandeza é difícil de ser avaliada, quer pelo requinte do texto, quer pelos argumentos que nela são apresentados - sem falarmos, é claro, na riqueza de informações sobre a disputa de idéias entre as duas maiores escolas filosóficas do Império Romano: o estoicismo e o epicurismo.

Sêneca, que é considerado um dos grandes representantes do estoicismo tardio (ou imperial), professava, como todo estóico, uma moral austera. No entanto, como era um homem de temperamento moderado e dotado de grande senso crítico, foi capaz de reconhecer e admirar os pontos positivos da escola rival, de modo que Epicuro é, muitas vezes, citado nas cartas como um exemplo de sabedoria. Afinal, apesar das divergências entre epicuristas e estóicos (algo que sobrevive desde a fundação dessas escolas na Grécia), ambos acreditavam que somente a filosofia poderia curar o espírito do homem e proporcionar-lhe a verdadeira felicidade - aquela que consiste na paz do espírito e que não depende de bens ou de glórias mundanas.

Nas Cartas a Lucílio - das quais 24 estão sendo publicadas pela editora Landy, com o título de As Relações Humanas - Sêneca trata de temas como a amizade, o tempo, a vida e a morte, a virtude, a liberdade, a felicidade, a sabedoria, entre outros. Embora não despreze a parte teórica e conceitual da filosofia, Sêneca procura dar ênfase às vicissitudes da vida concreta, pois acredita que a filosofia deve primeiramente ensinar a viver e não a fazer discursos. Deve, sobretudo, ensinar os homens a serem fortes diante dos sofrimentos e das perdas irremediáveis, mas também a fazer bom uso do tempo que possuem - pois, como nos diz o filósofo, não é o tempo que é curto, somos nós que o empregamos mal. Por fim, deve também preparar o homem para a morte (como pensava Platão), ensinando-o a não se desesperar diante dessa idéia. Afinal, como diz Epicuro, a morte só chega quando já estamos ausentes (isto é, quando estamos presentes, a morte não está, e quando ela está, nós não estamos, de modo que não há razão para temê-la, pois sem o corpo não há sensibilidade e, portanto, também não há dor e nem sofrimento). Já quanto à morte daqueles que amamos, há que se ter a força de um Hércules, pois a continuidade de toda e qualquer vida depende da firmeza diante dos tormentos.

No fundo, as cartas de Sêneca são uma espécie de guia prático para a vida e para as relações humanas (título bem escolhido para essa coletânea), consistindo numa verdadeira lição sobre como enfrentar as agruras da existência sem esmorecer. Para Sêneca, não há glória ou bem material que torne o homem livre ou feliz. Ao contrário, é preciso aprender a se desprender das coisas para poder dar valor ao que realmente importa. A liberdade (ou a felicidade) não depende de coisas externas, mas apenas da fortaleza do espírito e da coragem frente à vida. Só é verdadeiramente livre quem é senhor de si mesmo, afirma o filósofo. Por isso, quem não quer ser escravo das falsas necessidades e nem viver ao sabor dos ventos deve aprender a exercitar o espírito, tal como se exercita o corpo, pois a perfeição moral depende de uma luta interior travada contra si mesmo e contra as seduções e ilusões do mundo. De fato, apenas uns poucos afortunados nascem fortes e virtuosos, afirma Sêneca. A maioria dos homens precisa estar em constante embate para poder atingir alguma plenitude. Sabemos bem o que significa a virtude para um estóico: é o supremo bem, a fonte inesgotável da felicidade. Um ser virtuoso, diz ele, é constante em seus propósitos e firme em suas ações, independente de estar sob os olhos de todos ou absolutamente só.

Enfim, essa é a sabedoria de Sêneca. É claro que é difícil estar à altura dos seus ensinamentos... Mas, quem disse que é fácil viver e, mais ainda, viver plenamente, com firmeza, força e constância? Porque é esse exatamente o objetivo de Sêneca: viver de forma íntegra, justa e coerente. É isso que ele deseja ensinar com as suas cartas e com a sua obra de um modo geral. Se, como um estóico, ele despreza as paixões e os prazeres, nem por isso ele é um homem menos apaixonado. Sua paixão chama-se filosofia e foi a ela que o filósofo romano dedicou boa parte de sua existência. Se experimentou tantos dissabores nas suas relações com os homens ou com o poder, só encontrou alegrias no pensamento. Assim, parece mesmo que Sêneca não poderia deixar de concordar com Epicuro em mais um ponto: que nunca é tão cedo ou tão tarde para se dedicar à filosofia, porque nunca é tão cedo ou tão tarde para ser feliz!
Autor: Sêneca

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