04 abril, 2006

A GOTA

Mário tem uma gota em seu escritório. No escritório, Mário

tem uma gota. Uma gotinha d'água, simples e discreta.

Caindo do aparelho de ar condicionado sobre o sofá. Já faz uma semana. Ploc... Ploc... Ploc... É sua companheira. Mário botou um copo para que a água não estrague o sofá ou o carpete. Pouco tempo atrás, a secretária de Mário chamaria um técnico de ar condicionado, que arrumaria o problema e pronto. Mas isso era num tempo em que as pessoas tomavam decisões, tinham autonomia e responsabilidades. Um tempo que não existe mais. Enquanto isso, a gotinha vai pingando. O mundo mudou, as empresas mudaram e agora a visão é macro. A gota na sala do Mário tem de ser tratada de um ponto de vista global. E, do ponto de vista global, a companheira gota não é uma gotinha num escritório. É parte de um Tsunami. Pois como ela existem mais centenas ou milhares de gotinhas em escritórios da empresa em todos os países. A gota do Mário é prima da gota do outro executivo lá na Índia. Ou em Cingapura. E as primas têm de ser tratadas de forma global. E para isso implementaram um processo. E a gotinha pingando. Mário descobre a gota. Avisa à secretária. Ela chama a manutenção, que abre um chamado, pois tem de lançar no relatório global. Mas a manutenção sempre está ocupada, pois tem menos gente que o necessário para atender a tantos chamados, e não pode atender imediatamente. Finalmente aparece um indivíduo. Examina o ar condicionado e dá o diagnóstico: tem de chamar um técnico em ar condicionado. Volta para seu departamento e aciona uma das empresas aprovadas pelo departamento de compras. O técnico só pode vir na segunda feira. E a gotinha pingando. Vem o técnico. Acompanhado do cara da manutenção. Tem de trocar esta peça mais aquela, revisar aquilo e apertar isto. Volta para sua empresa. Vai mandar um orçamento para o departamento de compras, que então vai proceder à aprovação. Ou não. E a gotinha pingando. E o Mário observando... Mais de uma semana se passou. A gotinha já mobilizou o Mário, sua secretária, o cara da manutenção, o técnico, os caras de compras, sem contar uns indiretos. E continua pingando. Mário liga para reclamar. E toma uma dura.

- Esse é o processo. Tem de ser tudo dentro das regras!

Afinal, temos de controlar os custos, temos que ter o "compliance" (você já ouviu isso? Sabe o que é? Não? Então aguarde...). Os relatórios devem ser preenchidos e as compras feitas de forma a reduzir todos os custos. É para isso que existem regras e Mário, o indisciplinado, mais uma vez quer infringi-las. É um estranho no ninho. Carta fora do baralho. Disseminador do caos. Indisciplinado. E a gotinha pingando. Aí Mário pára pra pensar. Reflete sobre o tempo que estava gastando com essa história, sobre a quantidade de gente envolvida, sobre o total imobilismo em que essas regras estão jogando a empresa e toma uma decisão. Puxa o vaso para debaixo da gota. Que continua lá, linda, leve e solta... Pingando.



Este artigo é de autoria de Luciano Pires

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