03 abril, 2006

Em 'Cultura livre', Lawrence Lessig diz que direito autoral hoje inibe a criação

31/03/2006 - 18h48m

Leonardo Lichote - Globo Online

RIO - Num divertido exercício de síntese, pode-se dizer que "Cultura livre", de Lawrence Lessig, é sobre como (e por que) Mickey Mouse deixou de ser um sujeito bacana ao trocar suas amizades - afastou-se da criatividade sem regras de Pateta para se juntar à ganância egoísta de Tio Patinhas. E também sobre como essa escolha tem definido os rumos de nossa cultura. Para pior.

No livro, lançado no Brasil numa parceria Editora Francis/ Trama Universitário, o professor de Stanford questiona a maneira como os direitos autorais vêm sendo interpretados nas últimas décadas. A tese central: o conceito, que nasceu para proteger e incentivr o criador, hoje tem efeito contrário, usado como instrumento de controle da produção cultural pela grande "indústria de conteúdo" - estúdios de cinema, cadeias de rádio, editoras e gravadoras. Limites tecnológicos (como ferramentas de e-books que não permitem cópias) e jurídicos (como o alto valor das multas a quem supostamente viola direitos autorais) desencorajam qualquer artista que queira usar trechos ou simplesmente se basear em obras alheias. A permissão, por exemplo, para um documentário educativo que mostrou acidentalmente numa TV um episódio de "Os Simpsons" por 4 segundos custaria US$ 10 mil.

Lessig dá outros números que impressionam. A associação de gravadoras dos Estados Unidos processou em US$ 98 bilhões três universitários que adaptaram uma rede criada pelo Windows para compartilhar conteúdo (música inclusive). O Napster, sabemos, morreu assim. Já um médico que amputa a perna errada de um paciente pode ser obrigado a pagar U$ 250 mil apenas.

É reveladora a informação que, de alguma forma, a indústria cultural tenha ironicamente se construído sobre atos de "pirataria". Hollywood, por exemplo nasceu quando produtores independentes fugiram da fiscalização da Costa Leste para a Oeste para não pagar direitos autorais aos inventores do cinematógrafo. Piratas, enfim.

A causa pode sugerir uma abordagem socialista ou anárquica, algo como "lá vem o hippie-fora-de-época defendendo a pirataria contra o monstro do capital". Lessig não passa nem perto disso. Com argumentos agudos e didatismo, o autor sustenta seu discurso com solidez - uma espécie de Michael Moore sem fanfarronice e com algumas doses a mais de honestidade. Um raro exemplo de idealista capitalista, ele chega a provocar os fundamentalistas dos direitos autorais sugerindo-os que pensem o termo "cultura livre" como "mercado livre".

Mickey, então, é o exemplo perfeito da nociva mudança do entendimento sobre "propriedade intelectual". O ratinho surgiu em 1928 num desenho que era uma paródia de um filme de Buster Keaton do mesmo ano. Walt Disney simplesmente pegou uma idéia de outro e criou algo novo a partir dali - a cultura caminha assim, afinal. Hoje, o personagem aparece como símbolo do lobby feito pela Disney no Congresso americano para evitar que ele entrasse em domínio público em 1998. A empresa conseguiu prorrogar os direitos sobre ele - e tudo indica que conseguirá eternamente.

Lessig ressalta que, pior que não poder usar o Mickey ou qualquer que renda milhões, é não poder publicar ou inspirar-se em bens culturais não mais explorados comercialmente. Afinal, junto com Mickey, toda a produção cultural americana de 1928 para cá tornou-se protegida pelo copyright.

Apesar de estar focado na realidade jurídica americana, "Cultura livre" é fundamental para qualquer um que pense o futuro da cultura no mundo digital. Mais que denunciar, Lessig propõe caminhos, como o Creative Commons - licença que dá ao autor a condição de permitir tipos de uso para sua obra - para que Disneys possam continuar criando.

"Cultura livre", de Lawrence Lessig. Vários Tradutores. Editora Francis/Trama Universitário. Download gratuito no site:

www.tramauniversitario.com.br

Fonte:

http://oglobo.globo.com/online/cultura/mat/2006/03/31/246658470.asp

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