26 janeiro, 2006

McCarthy

Luis Fernando Verissimo

O repórter americano Edward R. Murrow ficou famoso pelas transmissões de rádio que fez de Londres durante a Segunda Guerra Mundial, que muitas vezes incluíam o ruído das bombas alemãs caindo por perto. Se os bombardeios ameaçavam mesmo o destemido Murrow ou se eram um efeito de sonoplastia, nunca se soube ao certo, mas ninguém discutiu a coragem de Murrow e dos produtores dos seus programas na rede de televisão CBS quando decidiram enfrentar o senador Joseph McCarthy, líder da inquisição anticomunista que agitava os Estados Unidos no começo dos anos 50. Murrow se transformara num respeitado homem de TV. Eu morava nos Estados Unidos na época e lembro dos seus dois programas de meia hora, “Person to person”, em que, de um estúdio, ele entrevistava personalidades nas suas casas, e “See it now”, de reportagens, um pouco na linha do que seria o “60 minutes”, anos depois. Foi no “See it now” que a CBS disparou contra McCarthy e seus métodos. Uma semana depois, deu espaço para McCarthy se defender. Até hoje se discute o que foi pior para McCarthy — o ataque ou a sua defesa desastrada.


Ainda não vi o filme que o George Clooney fez do episódio e não sei se ele sucumbiu à maior tentação que enfrentam as reconstituições históricas — a da supersimplificação. Já havia uma reação da imprensa “liberal” ao macartismo quando Murrow resolveu encará-lo e dentro do próprio Partido Republicano crescia o desconforto com o estilo do senador, que foi “censurado” pelos seus pares antes de cair no ostracismo e morrer. Toda a história daquele tempo deve ser revista não apenas no contexto da guerra fria, como no da guerra interna entre republicanos internacionalistas e a facção mais paroquial e reacionária do partido, que foi derrotada então mas acabou prevalecendo. O que não diminui a coragem da CBS, que arriscava perder anunciantes e ser boicotada pela sua posição, e de Murrow e seus produtores, que arriscavam perder o emprego.

Vale relembrar aquele período porque o conservadorismo americano tenta reabilitar a figura de McCarthy enquanto a imprensa americana se restabelece de um exemplo recente de coação macartista, quando se arriscava a ser chamada de antipatriótica se contestasse as mentiras de Bush sobre o Iraque. A reação a isto agora é generalizada e um claro precedente para a nova coragem é o exemplo de Edward R. Murrow, há mais de 50 anos.

Fonte:

http://oglobo.globo.com/jornal/colunas/veriss.asp

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