
Gustavo Pinheiro
Especial para o Globo Online
RIO - Há anos o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds e de Varsóvia, dedica-se a retratar as desastrosas conseqüências sociais de uma modernização que privilegia, segundo ele, apenas uma minoria. Prestes a completar 80 anos no próximo dia 15, o autor dos best-sellers "O mal-estar da pós-modernidade" e "Amor líquido" está mais ativo do que nunca: dois novos livros estão chegando ao Brasil, ambos pela Jorge Zahar Editor. Em "Vidas desperdiçadas", Bauman faz um prognóstico assustador: o crescimento incontrolável do "lixo humano", pessoas descartáveis - ou "refugadas", como prefere - que não puderam ser aproveitadas e reconhecidas em uma sociedade cada vez mais seletiva.
O outro lançamento é "Identidade", uma entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, em que reforça seus conceitos sobre a crise de identidade imposta pela modernização.

Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Bauman analisa a fluidez dos relacionamentos amorosos, compara a vida em sociedade ao "Big Brother", critica o combate militar ao terrorismo, comenta o "jeitinho brasileiro" e nega o rótulo de pessimista: "Acredito fortemente que um mundo alternativo seja possível", diz ele. Seu livro "Amor líquido" é um sucesso comercial no Brasil.
Na sua opinião, por que as pessoas têm se interessado tanto pelo assunto? Por que a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?
ZYGMUNT BAUMAN: As relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e tentar, mesmo que remando contra a corrente, solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, "até que a morte nos separe", mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa "até a morte" nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas sem esse compromisso e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro. De fato, é uma contradição sem solução. A esperança - ainda que falsa - é que a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quanto forem possíveis que a qualquer momento haverá alguém em algum lugar a quem pedir ajuda, compreensão e compaixão. É por isso que muitas pessoas tentam conter seus sentimentos.
O senhor está casado com a mesma mulher há 56 anos. Há segredo para uma união duradoura em tempos de "amor líquido", em que os parceiros são descartados de acordo com a sua funcionalidade?
BAUMAN: Quanto mais fácil se torna terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia , que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. Eu e Janina, provavelmente, consideramos isso mais aceitável do que a perspectiva de ficarmos separados um do outro. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar junto com o parceiro e, creio eu, da força do amor, que torna o auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador. Para que se torne doce, o auto-sacrifício deve se direcionar a um parceiro que seja profundamente amado; no entanto, o amor não é profundo se não foi valorizado por auto-sacrifícios anteriores para que sirvam de referência.
A sociedade fragmentada que o senhor apresenta em "Vidas desperdiçadas" não estimula a individualização e o sentimento de medo ao estranho que foram apresentados em "Amor líquido"?
BAUMAN: Claro. Nos comportamos exatamente como o tipo de sociedade apresentada nos ''reality shows'', como por exemplo, o Big Brother. A questão da ''realidade'', como insinuam os programas tipo Big Brother, é que não é preciso ''fazer algo'' para ''merecer'' a exclusão. Não se pode imaginar que a ordem para arrumar as malas e ir embora estaria por vir, e nada que você fizesse teria impedido isso. O que o ''reality show'' apresenta é o destino. Pelo que se sabe, a exclusão é o destino inevitável. A questão não é ''se'', mas ''quem'' e ''quando''. As pessoas não são excluídas porque são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. Afinal, um dos habitantes da casa deve ser expulso a cada semana, aconteça o que acontecer. Muitos dos telespectadores conhecem essa realidade. É exatamente essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa. Os medos afloram nesta época em que falta certeza, garantia e segurança. Para manter uma segurança, muitos de nós adotamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa "Survivor": "não confie em ninguém"! Um slogan como esse não prediz muito bem o futuro das amizades e parcerias humanas.
Em "Vidas desperdiçadas", o senhor menciona a questão criada por "imigrantes" em busca de um Estado que as proteja e lhes dê sobrevivência. De que modo os recentes atentados terroristas nos EUA e Europa são uma conseqüência dessa "marginalização" de seres humanos?
BAUMAN: A globalização negativa cumpriu sua tarefa. Mesmo com guardas de fronteiras e cães farejadores de explosivos nos aeroportos, as fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para os humanos. Podemos prever que quando - e se - os atentados terroristas desaparecerem, isso irá acontecer apesar da violência brutal das tropas que apenas fertiliza o solo onde o terrorismo brota e impede a resolução de questões políticas e sociais, as quais poderiam vir a cortar a raiz do problema. O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sócio-políticas forem cortadas. E isso vai exigir muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas e ações de policiamento. O conceito de "guerra contra o terrorismo" não passa de uma contradição. Armas modernas, desenvolvidas na era de invasões e conquistas territoriais, são incapazes de destruir alvos como esquadrões ou simples indivíduos viajando sem bagagem, munidos com armas fáceis de esconder. E enquanto se tenta localizá-los a caminho de outra atrocidade, desaparecem do local do ataque tão rápido e imperceptivelmente como chegaram. As respostas a esses atos terroristas são confusas e dispersas, atingindo uma área muito maior do que a afetada pelo ataque terrorista, e causando "acidentes colaterais" ainda mais numerosos, - além de provocar um aumento no volume de sofrimento, ódio e revolta acumulada e fazer crescer o recrutamento para a causa terrorista. A guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou Afeganistão são devastados ainda mais, mas quando as dívidas dos países pobres são canceladas, nossos mercados ricos são abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças atualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de educação. No entanto, há poucos sinais encorajadores de que esta verdade tenha sido colocada em prática. Os governos dos países mais ricos estão gastando em armas dez vezes mais do que gastam com auxílio econômico para a África, Ásia, América Latina e os países pobre da Europa juntos. A Grã-Bretanha reserva para armas 13,3% do seu orçamento, e para auxílio 1,6%. Para os EUA, a desproporção é ainda bem maior: 25% contra 1%
Fonte:
http://oglobo.globo.com/online/cultura/189045214.asp